terça-feira, 5 de abril de 2016

Gaúchos – ou Minha Experiência com o Preconceito

Levantou-se, não sobressaltada, mas tendo dormido bem menos que o de costume. Algo além de um desconforto (uma sensação de ter revelado algo que surpreendia a si mesma) permanecera durante o sono e agora decidira interrompê-lo. A mente (o espírito) queria pensar acordada.
Dois anos haviam se passado desde que se estabelecera em Florianópolis. Dois anos desde que começara a conviver na cidade e, desde então, experiências se acumulavam. "Escreveu errado? Deve ser nordestino"; "Parece que os existencialistas vão diminuindo no Brasil à medida que aumenta o sol"; "Lá no Rio Grande" (tem outro no país, sabia?). Para piorar circulava em ambientes acadêmicos. Ambientes acadêmicos, como bem se sabe, são grandes concentradores de pessoas arrogantes – aquele tipo de pessoas que jamais suportara. Entre os relatos autocentrados, cheios de si, competitivos, que buscavam apenas retroalimentar a vaidade de quem fala e não promover uma troca de ideias entre si, um sotaque que não engava: RS, ou interior de SC (em alguns lugares do interior de SC, as pessoas se acham mais gaúchas que os próprios gaúchos...).
Pensou em Pomerode[1] e sua supremacia na taxa de suicídio nacional. Pensou na explicação que ouvira sobre isso: cultura competitiva, individualista, baseada no "ter", "consumir" e não no "ser". Sentiu uma certa dose de pena das pessoas que acreditam realmente que o fato de alguém não possuir um carro diz algo sobre o valor daquela pessoa.
"Apita" o celular e, dispersa pelo desejo de atendê-lo, percebe que a mente faz novos caminhos que distorcem o sentido original de sentar e escrever um texto: a percepção de que, para fugir das posturas preconceituosas, tinha formado, sem querer, uma espécie de "preconceito reativo", mas não acreditava que isto pudesse ser algo bom. Preconceito não é algo bom, e ser injusta com um monte de outros gaúchos não soberbos também não. E não podia se deixar envolver pelo horroroso jogo da competitividade! É bem verdade que ainda lhe chocavam os relatos de desconhecimento das contribuições importantíssimas de pessoas de outros estados, desconhecimento que reforçava a crença de que sulistas sejam melhores; mas negar e ir para o extremo de que, na verdade, são os piores, também não empoderaria ninguém.
Não conhecia mesmo, era verdade, muitos exemplos de feitos importantes de pessoas do Sul, não compreendendo, por isso, a suposição mítica de que seriam pessoas melhores simplesmente por descenderem de europeus (quem disse que são só os sulistas, e quem disse isso quer dizer alguma coisa?). No entanto, decidira que devia conhecer, e não se guiar pela avareza cognitiva que sempre nos leva a operar a partir do mínimo possível de informação, fazendo julgamentos tendenciosos. Será mesmo protetivo ficar sempre com um pé atrás, evitando se chocar novamente da próxima vez que algum comentário arrogante e preconceituoso vier? Ou será uma postura que atrapalha a interação, dificultando ainda mais os processos de troca que poderiam levar a pessoa a reconhecer, envergonhar-se e refletir sobre seus preconceitos para lidar de forma melhor com eles, como faço agora?

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Virgínia Levy é psicóloga, carioca, de mãe baiana e pai carioca. Mora há 2 anos em Floripa, e se surpreendeu ao perceber que estava reagindo ao preconceito com preconceito contra os preconceituosos, o que acha péssima ideia. Conhece muita gente boa e ruim de toda parte do planeta, e reconhece isto, mas estará secretamente querendo te dar um soco se você estiver sendo arrogante, se vangloriando (sobre qualquer assunto). Entre acordar e efetivamente escrever o texto que lhe motivou a levantar da cama hj, viu um texto que falava do empoderamento feminino por via do reconhecimento dos atributos pessoais, e pensou que o orgulho separatista do sulista de hj pode ter sido o empoderamento do oprimido de ontem (pela Coroa Portuguesa).




[1] Município de Santa Catarina. 

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