Levantou-se, não sobressaltada,
mas tendo dormido bem menos que o de costume. Algo além de um desconforto (uma
sensação de ter revelado algo que surpreendia a si mesma) permanecera durante o
sono e agora decidira interrompê-lo. A mente (o espírito) queria pensar
acordada.
Dois anos haviam se passado desde
que se estabelecera em Florianópolis. Dois anos desde que começara a conviver
na cidade e, desde então, experiências se acumulavam. "Escreveu errado? Deve
ser nordestino"; "Parece que os existencialistas vão diminuindo no
Brasil à medida que aumenta o sol"; "Lá no Rio Grande" (tem
outro no país, sabia?). Para piorar circulava em ambientes acadêmicos.
Ambientes acadêmicos, como bem se sabe, são grandes concentradores de pessoas
arrogantes – aquele tipo de pessoas que jamais suportara. Entre os relatos autocentrados,
cheios de si, competitivos, que buscavam apenas retroalimentar a vaidade de quem
fala e não promover uma troca de ideias entre si, um sotaque que não engava:
RS, ou interior de SC (em alguns lugares do interior de SC, as pessoas se acham
mais gaúchas que os próprios gaúchos...).
Pensou em Pomerode[1]
e sua supremacia na taxa de suicídio nacional. Pensou na explicação que ouvira sobre
isso: cultura competitiva, individualista, baseada no "ter",
"consumir" e não no "ser". Sentiu uma certa dose de pena
das pessoas que acreditam realmente que o fato de alguém não possuir um carro
diz algo sobre o valor daquela pessoa.
"Apita" o celular e,
dispersa pelo desejo de atendê-lo, percebe que a mente faz novos caminhos que
distorcem o sentido original de sentar e escrever um texto: a percepção de que,
para fugir das posturas preconceituosas, tinha formado, sem querer, uma espécie
de "preconceito reativo", mas não acreditava que isto pudesse ser
algo bom. Preconceito não é algo bom, e ser injusta com um monte de outros
gaúchos não soberbos também não. E não podia se deixar envolver pelo horroroso
jogo da competitividade! É bem verdade que ainda lhe chocavam os relatos de
desconhecimento das contribuições importantíssimas de pessoas de outros estados,
desconhecimento que reforçava a crença de que sulistas sejam melhores; mas
negar e ir para o extremo de que, na verdade, são os piores, também não
empoderaria ninguém.
Não conhecia mesmo, era verdade,
muitos exemplos de feitos importantes de pessoas do Sul, não compreendendo, por
isso, a suposição mítica de que seriam pessoas melhores simplesmente por
descenderem de europeus (quem disse que são só os sulistas, e quem disse isso
quer dizer alguma coisa?). No entanto, decidira que devia conhecer, e não se
guiar pela avareza cognitiva que sempre nos leva a operar a partir do mínimo
possível de informação, fazendo julgamentos tendenciosos. Será mesmo protetivo
ficar sempre com um pé atrás, evitando se chocar novamente da próxima vez que
algum comentário arrogante e preconceituoso vier? Ou será uma postura que
atrapalha a interação, dificultando ainda mais os processos de troca que
poderiam levar a pessoa a reconhecer, envergonhar-se e refletir sobre seus
preconceitos para lidar de forma melhor com eles, como faço agora?
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Virgínia Levy é
psicóloga, carioca, de mãe baiana e pai carioca. Mora há 2 anos em Floripa, e
se surpreendeu ao perceber que estava reagindo ao preconceito com preconceito
contra os preconceituosos, o que acha péssima ideia. Conhece muita gente boa e
ruim de toda parte do planeta, e reconhece isto, mas estará secretamente
querendo te dar um soco se você estiver sendo arrogante, se vangloriando (sobre
qualquer assunto). Entre acordar e efetivamente escrever o texto que lhe
motivou a levantar da cama hj, viu um texto que falava do empoderamento
feminino por via do reconhecimento dos atributos pessoais, e pensou que o orgulho
separatista do sulista de hj pode ter sido o empoderamento do oprimido de ontem
(pela Coroa Portuguesa).
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