sábado, 23 de fevereiro de 2019

Manhãs de sábado têm algo que eu desconhecia.

Olho o brilho do céu com estranheza. É difícil de assimilar quando a mudança é de outra ordem. Se eu a forçasse, faria sentido, mas, quando o mesmo corpo que gritaria e espernearia por ter que acordar às 9h começa a despertar espontaneamente antes das 8h, a gente fica perplexa. 
Não que eu já não amasse, desde criança, esse brilho intenso, penetrante, mas sutil, que só dá as caras bem bem cedo. Não estou forçando nada. Curiosamente, no momento em que estou mais aberta a ouvir o que o meu corpo quer, o que ele quer é acordar cedo, e quer até dar uma caminhada. Não me (re)conheço.
Qto tempo passei sem um café da manhã decente? Mesmo com cores tão bonitas neste dia, ainda estranho um pouco a minha decisão de caminhar e ir comprar pão. Resolvo ir contando os segundos: são 120 elefantes, ou seja, 2 minutos. (Desde a aula do Paulo na oitava série, me acostumei a contar os segundos em elefantes). No campeche a "manada" seria de pelo menos 1800 segundos para um pão matinal. Eu teria ido comprar pão se ainda morasse lá? Vai saber...
O bom é que numa manhã de sábado o mercado está bem vazio, o que me dá tempo pra conversar com a caixa. Sua filha já tem um ano? Não, ainda vai fazer 2 anos que moro aqui no próximo mês, e eu me lembro da gestação inteira. Lembro do dia em que ela me deixou ficar devendo; lembro do dia em que comentou (como hj) que eu estava sumida, e eu respondi que, sendo fim de mês,a gente não tem dinheiro pra ficar indo em mercado rs... Era a mais pura verdade.
Eqto isso, alheia a todos os meus pensamentos, Sophie (será este mesmo o nome?) quer jogar balas no chão, e fica encantada com o fato de que posso me abaixar, pegar e devolver pra ela. Como qqer criança desta idade, anima-se com esta possibilidade, e inicia um jogo de arremessar pra ver pegar. Despeço-me rindo, e imagino que está indignada pq disse "tchau" e, portanto, vou interromper o jogo; mas sua mãe me explica que, como gesticulei em sua direção, Sophie entende que é hora de vir para o meu colo. Com a permissão da mãe, pego Sophie, e ganho o dia. Sol matinal e criança sorrindo no colo. Obrigada, Vida! Vc n vai ser sempre fácil, sempre good vibes, mas este combo energético pela manhã foi um baita presente!
Manhãs de sábado têm algo que eu desconhecia.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Dia roxo

Florianópolis, 19/02/2019. 

A cor do céu é o que me chama pra janela. Tons arroxeados e azulados, que contrastam com o os dias brancos e cinzas, ou azul-amarelo-rosados que tenho visto quando o sol se põe neste início de ano. As luzes vermelhas enfileiradas são lindas de dia, e percebo que gosto de tds os sons, até das buzinas. Certamente os motoristas dos carros me xingariam por isto; eu mesma talvez xingasse se estivesse num carro e não numa janela. 
Penso com tranquilidade sobre as estranhas alegrias de ser uma criatura urbana, e noto o aspecto pasteurizado de um trecho da Hercílio Luz. Parece bem mais bonito, de longe, um trecho que me dá medo. Não é só o distanciamento, percebo: alguém pintou a ciclovia e, ao que parece, reformou a calçada. Pq só naquele trecho?
É no meio do fluxo de pensamentos sobre gentrificação que minha atenção é atraída por pessoas correndo. Noto que são meninos, com uniforme esportivo. Daria uns 13 anos para os primeiros. É engraçado pensar o que os pais pensariam se pudessem observar o percurso: corredores da escola, calçada com usuários de crack (que observam calmos a invasão de seu "domicílio"), porta do puteiro, corredor da escola novamente... O que ofende mais, falar puteiro e aderir linguisticamente a termos carregados de misoginia, ou falar prostíbulo e mascarar a realidade crua?
Noto então que alguns dos rapazes não correm: andam e conversam. - "É pra correr, porra!". Escuto o grito e não identifico de onde vem; só sei que logo avisto rapazes maiores, de 16, 17 anos, efetivamente correndo.
Quando penso que vão ultrapassar os caminhantes, contudo, param de correr e adentram o Doce Veneno. Logo saem, e entram de novo, animados, em uma versão light do que imaginam que poderiam fazer naquele lugar. Hoje, porém, a satisfação sexual que terão é ter entrado naquele lugar, de onde logo saem, correndo como se jamais tivessem interrompido o treino.
Enquanto isso, o engarrafamento (que aqui se chama "fila") continua, a galera na calçada continua (comovida apenas com algo que parece uma camisa recentemente doada), a matização do céu com novas cores continua, a vida continua.
Não trago, desta vez, nenhuma lição, nenhuma grande sacação; só a realidade nua que tive o prazer de observar. Talvez não haja mesmo nada além disso na vida: discursos polifônicos a se observar. Ou talvez falte evolução para perceber na polifonia aparentemente dissonante algo além da beleza (consonâncias e coincidências a se sentir, a se notar).